Para
quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa das suas sensações uma
religião e uma política, para esse o primeiro passo, o que acusa na alma que
ele deu o primeiro passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária e
desmedidamente. Este é o primeiro passo, e o passo simplesmente primeiro não é
mais do que isto. Saber pôr no saborear duma chávena de chá a volúpia extrema
que o homem normal só pode encontrar nas grandes alegrias que vêm da ambição
subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente desaparecidas, ou então
nos actos finais e carnais do amor; poder encontrar na visão dum poente ou na
contemplação dum detalhe decorativo aquela exasperação de senti-los que
geralmente só pode dar, não o que se vê ou o que se ouve, mas o que se cheira
ou se gosta — essa proximidade do objecto da sensação que só as sensações
carnais — o tacto, o gosto, o olfacto — esculpem de encontro à consciência;
poder tornar a visão interior, o ouvido do sonho — todos os sentidos supostos e
do suposto — recebedores e tangíveis como sentidos virados para o externo:
escolho estas, e as análogas suponham-se, dentre as sensações que o cultor de
sentir-se logra, educado já, espasmar, para que dêem uma noção concreta e
próxima do que busco dizer.
Fernando Pessoa