Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens
haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a
haviam tido — sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende
naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria
desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço,
porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que
pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes
espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como
eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo
improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a
Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a
espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer
outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de
Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos
antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de
animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer
numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela
distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é
a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento
da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia. A quem, como eu, assim,
vivendo não sabe ter vida, que resta senão, como a meus poucos pares, a
renúncia por modo e a contemplação por destino? Não sabendo o que é a
vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque se não tem fé com a razão;
não podendo ter fé na abstração do homem, nem sabendo mesmo que fazer
dela perante nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação
estética da vida. E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos,
indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos
futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo
sutilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.
Fernando Pessoa
in Livro Desassossego
1 comentário:
Genial, absolutamente.
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